terça-feira, 22 de maio de 2012

PEDINDO LICENÇA


Recebi este texto por e-mail e voltei lá em 1971, meu 1º ano no curso de Letras onde tive o privilégio de conhecer Francisca Vilas Boas, a Chica, por ela ser grande amiga de Elias José   que nos apresentou e a partir daí foram muitas histórias da "FAFIG" que prometi a Te Araujo Dias contar aqui.  Vou fazer isto sim, mas hoje estou pedindo licença a você Chica, para publicar seu texto. Lindo! Como tantos outros que você escreve.  Uma grande abraço com muitas saudades. 

Guaxupé : Imagens e Lembranças.

Francisca Vilas Boas. 
Chegas com tuas ruas, tuas casas, tuas sombras e torres.... ou sou eu quem entro em teu espaço erguido do passado?  Pontuado de imagens e voz? Voz tonal, escandindo sílabas, soando para além da clareza, marcando pontes. Interregnos da lembrança. Preces na tarde. Tardes luzentes. O imaginário exige. Deseja e quer o outro. Exige o próprio desejo de desejar. Então vou por tuas sendas. Planuras. Praças. E me encontro entre risos. Entre rostos. Melancolias. Seres com mãos e gestos. A alma descendo pelas faces. Uma cidade sempre tem alma. Quem sabe por isso encanta-se das almas.  Se deixa povoar com elas. Flanando encontro casas, campo de esportes. Banda de música. Lembro nomes. A Academia do professor José Gonella.  Foi assim que ela  ficou na lembrança. O rosto generoso de quem acolhia me sorri das escadas. Despojado.  Então chega o professor Vinícius Eclissato com a exigência de educador. Com a sempre régua de indicar anotações no quadro-negro. E que também servia para espantar preconceitos. Fora das aulas, com a atitude de quem sabia orientar, emprestava-me livros.  Apresentou-me a Eça de Queiroz que fazia parte de sua biblioteca. Eu lia com sede. Entre sombras recordo-me de O Crime do Padre Amaro. Em átimos, atravesso páginas, viro as costas a Amaro e despeço-me de Amélia que sofre o medo do pecado. Sigo abrindo outras salas. Nesse espaço de silêncios reverentes e risos irreverentes desfilam os rostos do professor Abel; de Gilberto Pásqua e sua terna gentileza; de Dr. Artur Leão professor dedicado e  profissional das leis; Raimundinho, dublê de carteiro e  professor de matemática. Continuo entrando em horizontes sem divisões do tempo. Sem paredes. Nenhumas. Lembrar é generoso: o tempo vem sem fronteira e o espaço é multifacetado. Lembrar é atravessar palavras. Suas sombras.  Movimentos. Se deixar tocar pelas vozes. Perder-se em corpos que se transformam. Estou no colégio das freiras. Ali encontro madre Conceição com seu sorriso de Mônica, a dentucinha. Ela, a que me fez olhar para os textos. Aproximar-me das palavras; da sintaxe. Sintaxe que ia além das frases. Sintaxe da vida. Não é o que buscamos? Organizar e tornar coerente nossa alma? Nossa expressão? Possível isto? Quem o sabe?  Para desconstruir, primeiro há que construir. Só assim é possível desvelar. Desvelar o que existe e existiu já afastado no tempo. Descendo, em direção ao centro, encontro Zé maquininha. Caixeiro que montou uma escola de datilografia, após aposentar-se. Admirado em silêncio por essa que passa. Ou foi ele quem passou? Quero continuar andando por tuas ruas que aparecem pelas fotos, misturadas com a voz carnosa de Nabih  Zaiat. Sim; lembro-me do seu nome! E desejo outros rostos que chegam. Rostos que atravessam minhaflânerie pelas fendas do passado. É quando o vejo com seu andar miúdo e rápido.  Millo Carli Mantovanni. Pedagogo. Paciente. Várias vezes me fez descer das árvores do Colégio Estadual onde cursei o científico. Obrigava-me a descer sorrindo. Eu e meus colegas. E íamos para a sala de aula. Ali nos esperava o saber dosado de Dom Reis com pequenos textos em Latim; a leveza de Padre Mário; de Selma Perocco; de Neuza Rodrigues. O Professor Ronaldo Xavier, com suas demonstrações de química, sempre esperado pelos “crânios.” Ubiratan Zucherelli com sua Física que nunca consegui ‘metabolizar’, pois a matemática sempre foi a pedra no sapato. E a Física anda junto com a matemática. Com bolhas nos pés e constrangida pela dupla incapacidade, encontro a freira que nos ensinava espanhol. E ela sorri. Em espanhol.  E eu sorrio sem lembrar-me de seu nome. Mas recordo que o castelhano começou a empolgar-me ali no científico, com aquela freirinha pequena. Suave. Ainda que tenha sido apenas um ano de convivência. Guaxupé e seus sinos. Signos. Marcos Noronha desce a rua apressado. Vertentes. O raciocínio entre existencialista e cartesiano. Ele que imprimiu reflexão ao que fazia. Personalidade que rompia amarras. Avançava. Parecia ter lido vários tratados de ateologia. Viveu à frente do comum. Sabendo criar; criticar. Entre curvas e arrancos me desfaço na ingenuidade diante de Terezinha Vômero que me pedia a resposta: “há doze laranjas com João. Se você retirar  um 1/6 delas, quantas vão restar?” E eu consumida no silêncio. Um sexto para mim (com 10 anos e nenhum conhecimento matemático) significava um cesto onde as laranjas eram colocadas. Um sexto era um cesto. E ela riu como riu agora, nesse instante. Riso grande, de doçura. Não senti acanhamento pela ignorância.  Ela: uma das professorinhas que completou meu beabá em Guaxupé. Beabá  iniciado, pela minha irmã,  na escola do sítio onde  eu morava.  Dona Carlina professora do grupo Cel. Antônio Costa. Com seus poemas declamados. Amor pelos parnasianos. Mas amor. É Guaxupé contando. Não sou quem conto. Estórias. De sua História pouco conheci. A não ser o trajeto da Mogiana (1872) que de Campinas  ia até Passos parando em várias estações. Muitas delas com nomes indígenas. Japy. Jaboti. Frente a minha casa de menina. Imagens. Fragmentos. Base. Cultura do café. E lá está o prédio da Faculdade. Professores. Amigos. Silhuetas indeléveis. (Dói saber que a Faculdade de Letras; o Colégio das freiras e a escola do professor Gonella não existem mais!) O retrato faz doer a ausência. Assim como as lembranças desvelam, as ausências revelam. Ausências reais a espalharem a falta. A lástima.  Decepcionada baixo pela Rua Aparecida. E Dona Iolanda Bertonni, diretora de centro escolar, conhecida de minha irmã, vem falar comigo. Rosto madonal.  E não pude dizer-lhe como seu profissionalismo e afeto ajudaram pessoas em Guaxupé. Lamentando a tristeza dos gestos que não foram estendidos, deparo-me com Raifa Sayeg. Generosa, ela  me convida para um café em sua casa. Sempre suave. Ali vivia José Maria, aquele que pintava telas diferentes. Cenas surreais. Belas. E evitava o sol com toda a energia.  Gostei do café e de José Maria. Vivi com Raifa em sua casa durante um ano. Ecoa a prece que Nabih faz. Frente ao cinema encontro Balbino, o pipoqueiro! Com a deferência de sempre me oferece um saco de pipocas. Logo em seguida vejo Reo subindo a Rua Nascimento em terceira. Brrrsss... Faço meia volta e vou até a sorveteria do Hélio e do Valter para um gelado. Nos anos que por ali andei, essas e muitas outras pessoas não nomeadas, deram cor à cidade. Contribuíram para a cultura, para o bem-estar social. Sem compromissos ofereciam apólis. A política nasce do exemplo. A cidade de seus acertos. De seus vícios. Despertam no íntimo do morador, sementes que frutificam. A vida é solo de fazer e refazer. Solo. Voz única. Ou coro. Gestos que compõem a história.  História que deve continuar alimentando solos férteis. Coros fortes. Homo Ludens. Da planta chega outra planta. Ramos. Luz. Frutos. As imagens, a voz e a música se calam. Volto a existir no presente. Na casa onde existo. Acrescentada de mais um momento. Acrescentada de mim mesma.


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